Todos nós sabemos que as aves de
arribação têm uma bússola inserta que as conduz repetidas vezes ao mesmo lugar.
Poucos saberemos, pelo contrário, que há humanos, quiçá biologicamente
aparentados a essas aves, que gozam do mesmo comportamento: de tempos a tempos,
quase com uma meticulosa certeza, voltam ao mesmo sítio.
É evidente que, para determinar
com suficiente rigor tais frequências, necessário se torna adotar semelhantes
comportamentos. Se de máquina fiel registadora não podemos fazer uso, só nos
resta uma saída: aumentar o nível das coincidências e depreender, desse irrefutável
facto, que se nós regressamos muitas vezes e o outro regressa muitas vezes,
então assume-se como consequência necessária que também o outro tem um
comportamento repetitivo.
Das razões da nossa rotina, das
visitas sucessivas, do tempo que nesse lugar passamos, conseguimos, com relativa
facilidade, dar conta e explicação convincente. E desses outros, desses que
tanto ou mais do que nós ao mesmo lugar regressam vez atrás de vez, será que
saberemos enunciar as razões? Temo que não.
É nesta altura da conjetura que a
imaginação se impõe como um guia mais ou menos fiável, fiabilidade esta que dependerá
do grau de dados objetivos que tome em consideração e que lhe sirvam de ponto
de partida. Dalguns sabemos a suposta nacionalidade, a língua que falam, os
conhecimentos que veiculam e o modo como se relacionam com outros naquele palco
iluminado. Como sobrevivem? Que forma mais ou menos clara os mantém com
capacidade para suprir as necessidades diárias? De onde vieram para onde vão? Quanto
há de verdade no que dizem, no que dizem do que fizeram, ou no que fizeram do
que dizem? São personagens enigmáticas que falando aparentemente de si nunca
saberemos de quem falam.
Ocorreu-me hoje e com a evidência
da intuição cartesiana: Lisboa é de tal maneira acolhedora que só podemos estar perante
personagens que se cansaram dos romances e quiseram ser gente durante breves
instantes roubados à eternidade da obra. É possível que, um dia destes, Paco
volte ao romance de Ballester de onde saiu para ler o El país e sonhar ser
basquetebolista; que o tunisino volte a ser uma personagem de Camus ou de Maluf,
mesmo que não saiba quando a mãe morreu; que o negro cantando blues e gospels
volte para o disco de onde tirou umas breves férias, cansado de tanta volta em
torno de si mesmo; o encantador de gaivotas volte para a caneta de Sepúlveda,
ainda com algumas migalhas de pão para espalhar pela mesa de trabalho e que a
velhota que adormece nas escadas do cais, dias incontáveis, volte a ser a
sereia que se apaixonou irremediavelmente por marinheiro de outro tempo e
outras navegações.
Quando isso acontecer será tempo de arrumar as câmaras de vez e castigar com a irremissível solidão o bibliotecário do cais.
2 comentários:
Acho muito feliz a ideia das personagens virarem costas às páginas romanescas, e saltarem para o ar livre das ruas... Como regressarem ao ponto de partida, acaso isso signifique desejo de alternativa à rotina...
Quanto ao arrumar das câmaras, não sei, mas também podem ser aplicadas na fixação de pequenos textos ou poemas!...
Um abraço do
R.M.
( E venha o próximo!...)
E para quando o próximo?
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