Para a memória é indiferente que
o teu rosto se esconda para mudar. Para lá da sombra, do que de nuvens se pode
esperar em dias de desencanto, os traços firmam-se no bronze indelével que há
logo abaixo da pele, e é lá que a memória mora.
Os pequenos truques de cor não
passam de invenções de luz, como esse cabelo que terá ascendido em demasia para
tão intenso nevão, e não chegam para iludir os que de perto te reconhecem os
passos, mesmo os mais suaves, mesmo os que não se chegam a consumar, mesmo o
que de movimento há na mais absoluta quietude.
É quase um gracejo primaveril o
olhar que lança uma âncora para impedir partir, ingénuo como um cortejo de
personagens de névoa, manso como tudo o que se abstém de acontecer, frágil como
o gelo que se faz teto na água de uma só noite.
Em tudo o que respira há um
relógio que, embora retalhe o tempo, nada lhe retira nem acrescenta, como esses
rios, mares e oceanos que correm no mesmo corpo e são sangue do mesmo sangue e
se inventam correntes e marés e são apenas um líquido abraço sobre um dorso de
mulher.
Revisito a memória como quem revê
um velho amigo, e ela, como os verdadeiros amigos, porque me vive por dentro,
persiste nas histórias em que parece ter vivido sozinha, talvez para incentivar
o espanto e a admiração e acordar o que da imaginação sobreviveu aos invernos de
diluviana realidade.
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