Um gajo fica deveras fodido quando descobre que o filho da
puta do tempo é um vetor orientado que vai alisando e tornando infértil os
terrenos por onde passa. A paisagem, antes diversificada e frondosa, chegando mesmo a ter frutos ímpares, é agora
monótona e incolor. O corpo, que era uma espécie de vulcão que nos
esforçávamos por manter dentro da cratera, mesmo quando em erupção, é agora uma
imagem espetral cada vez mais pálida e de limites imprecisos.
Esta maneira de consumir o pavio em lume brando, fingindo
que se ilumina alguma coisa, quando, de facto, apenas se consegue ver onde se
coloca o pé seguinte e nem sempre, é uma espécie de tortura. Uma espécie de
imposto diluído a pagar pela vitalidade, pela força, pelo ânimo, pela vontade e
desejo que nos foram preenchendo dias atrás de dias.
Não temo envelhecer. Até porque não é retórica dizer que se
está a envelhecer desde que se nasceu: é um facto! Mas chateia-me esta substituição
da força pela flacidez, da garra pela condescendência, do espírito pronto pela
inércia supostamente contemplativa.
A idade transforma-nos de uma forma indecente, alheia à
nossa vontade. Deixamos de ser senhores de partes do nosso corpo que ganham,
por estas alturas, vontade própria ou, na pior das hipóteses, não respondem
seja qual for a vontade que as provoque. Ocorrem, com uma frequência
desajustada, o mau feitio, a revolta, a ira, e o desejo de fechar os olhos.
Em tempos cuidava, e cuidava mal, cuido eu agora, que
aqueles velhos que demoravam a mover-se, que pareciam um guindaste em
periclitante equilíbrio ameaçando dobrar-se de vez a cada instante, eram
preguiçosos, apenas procuravam chamar a atenção uma vez o charme do vigor já ido… pois, de facto, a injustiça acaba sempre
por ser corrigida, demore o que demorar, e o verdadeiro justiceiro, Anaximandro
dixit, é o tempo.
É verdade que agora
dialogamos com mais partes do corpo: falam as articulações, falam os músculos e
falam muitos terminais sensoriais que nem sequer imaginávamos que existissem.
Em contrapartida, os outros julgam, quem sabe se com razão, que já esgotámos
tudo o que tínhamos a dizer e por isso deixam-nos descansados e absortos com as
nossas novas e demoradas vozes de dentro para dentro.
Mas a idade traz a sabedoria! Oh, que felizes deveríamos
ficar!... Mas quando chega a sabedoria estamos a fazer as malas e, assim sendo,
para que raio nos serve a sabedoria se a viagem das viagens é a mais solitária
de todas? Para sabermos o caminho, para não nos enganarmos no caminho? Pois deixem-nos andar sem norte! A
sabedoria não partilhada não existe, como as obras-primas por publicar não
existem, como o futuro não existe senão quando se faz presente. Trocava, de bom grado, a sabedoria por uns
gémeos mais ágeis, por uma coluna versátil, por uns neurónios em excelente forma eletroquímica e por um
fígado capaz de causar inveja a Baco... Será pedir demasiado?
2 comentários:
Mas que porra de texto que dá vontade de (re) ler!
SÓ MAIS UM!
Enviar um comentário