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quarta-feira, fevereiro 15, 2006

"Senhor do tempo"


Será que os que não têm relógio, a não ser o da alma, também celebram datas? Se esquecêssemos o relógio mecânico, se atendêssemos só ao relógio solar, ou à clepsidra, poderíamos furtar algum tempo ao tempo. Assim, não envelheceríamos nos dias em que o Sol se esconde ou, em alternativa, nos dias de estio em que a chuva não nos visita. Em pequeno desmontava e montava um velho relógio como forma de iludir a espera. Nessa altura eu era o “senhor do tempo”. Rodava perto da vertigem os ponteiros, e, desse modo, os minutos e as horas comprimiam-se ou distendiam-se a meu belo prazer. Viajava no mostrador como quem viaja pela vida, com a vantagem de poder parar e regressar ao início se a história começasse a ganhar contornos que me desagradassem. Nesse tempo era-me permitido retirar os ponteiros e com esse gesto de assombrosa rebeldia criar a eternidade. Aproveitava então para sonhar sem estar sujeito ao ciclo dos despertares sucessivos. Viajava pelas quatro paredes do quarto como numa tela panorâmica e os cavalos de vento saltavam as arestas e perdiam-se no tecto como as constelações se perdem no firmamento. Voltava a colocar os ponteiros porque me apetecia voltar a ter fome e permitir que a minha mãe regressasse. Eu sabia que ela não regressava enquanto os ponteiros não voltassem ao mostrador. Aliás, nessa altura só acontecia o que eu quisesse que acontecesse, porque eu era o “senhor do tempo” e o “senhor do tempo” é o único que tem poder para criar realidades ou, magnanimemente, permitir que elas se sucedam no seu ritmo natural. Infelizmente esse relógio perdeu-se algures na minha meninice, daí para cá tenho envelhecido e deixei de ser o “senhor do tempo”. Se alguém souber do meu relógio (isto se não tiver aprendido a usá-lo para sonhar alheio ao tempo) agradecia que mo enviasse. É fácil reconhecê-lo! Se olharem bem no mostrador as minhas impressões digitais cavaram um círculo exacto e o soar das horas confunde-se com o soar do meu coração, a corda é a mesma e acertámo-nos numa cumplicidade que por ser fora do tempo é mais duradoira que a própria eternidade.

2 comentários:

Anónimo disse...

Muito bem esgalhado o Senhor do Tempo. Vê-se que não te falta corda para continuares a mover os ponteiros da escrita. Um Abraço.Renato

Anónimo disse...

Belíssimo! Ainda bem que perdeste o relógio, na tua meninice. Foi bom tê-lo, enquanto foi possível! Depois, pudeste acrescentar, ao tempo que poupaste, a sabedoria necessária para crescer. Se fores tu a encontrá-lo, empresta-o ...
Um abraço, bom amigo.