Entardece nas colinas de Lisboa.
A verticalidade calcária da igreja impõe-se no rigor da sua branquidão a toda a
cidade em redor. Corre uma aragem minuciosa e fria que fende a pele nos lugares
expostos. A porta range nos gonzos e abre para um lugar divino a acreditar nos
crentes.
Solicito, o moço guardião, pede-nos que
tomemos um dos corredores laterais, uma vez que se está a realizar uma
cerimónia litúrgica. Surpresos, porque os religiosos se não divisavam, dissemos
ao que vínhamos: à imposição do novo manto ao senhor. A nave central
franqueou-se-nos de imediato. Se vos move tão nobre objectivo, podeis
dirigir-vos para a sala ao cimo das escadas.
A sala era pequena. Algumas das
testemunhas não tinham conseguido lugar prioritário e amontoavam-se na porta
franqueada. Movi-me estrategicamente e, junto de uma das ombreiras, serpenteei o
olhar por meia sala, a parte que me foi permitido aceder do lugar em que me
encontrava. Rostos compenetrados, com um profundo e temeroso respeito,
deixando, na maior parte dos casos, ver as marcas do tempo, olhavam
centripetamente um vulto no centro da sala. Podiam ouvir-se, se de ouvido
atento fizéssemos uso, pequenas ladainhas de pesar. Algumas mãos retorciam-se
de autêntica paixão.
No meio da sala, no coração de
todos mas no meio físico e geometricamente definido da sala, um figura
imponente permanecia passiva e pacientemente imóvel. Não obstante sobre si
pendia, não a luz sapiente e omnipresente do pai, não o espírito santo em
trabalho quotidiano, mas uma formidável e intimidante chave de fendas em
trabalho de aturada e escrupulosa pontaria. Cada vez que a chave descia, como
há dois mil anos atrás cada martelada no cravo, a multidão sentia um quase
fatal aperto no miocárdio. A auréola do senhor, com a rosca provavelmente moída
de tanta renovada imposição, teimava em não unir-se ao corpo do senhor. Do
fundo do meu olhar sacrílego e lutando tenazmente entre o cómico respeito e
respeito cómico, só me lembrei do poema de Augusto Gil: mas as "beatas", Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...
1 comentário:
Aqui está uma "fotografia que não se limita à narratividade. E destas imagens é que eu gostava de ver com frequência. Um dia destes, ponho-me a imitar-te!...
Um abraço,
R. M.
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